e de repente eu estava sentado ali, naquele que já era o meu meio-fio. pessoal. particular. tão feito pra mim e praquele momento úmido que só agora - sexta chuvosa de maio às duas -, só agora haviam unido-se 'fio' e 'meio', motivo e objeto, e bem no meio de mim, num ângulo que justificava enfim todo aquele cimento formatado no qual eu sentava. à esquerda alguns rostos primavera, tão estranhos ao momento e sem sentido que seria demasiado para eles saber o que eram, quão canastrões. não suportariam, eles que sorriam - mas também é possível que fingissem afinal, e se sim, ao invés de deslocados eram então os mais preciosos elementos de toda a composição(eu tenho me impressionado muito com essa coisa de os opostos radicais acabarem sendo sempre a mesmíssima coisa). prosseguindo. à direita um cachorro molhado. perfeito e preciso. assobiei baixo pela fresta de meu dente torto, mas ele entretia-se entre sacudidelas, coçares e arroz com brócolis, essas coisas que nos tornam o que somos. por sob minhas pernas um mini rio. com mini barcos-folhas e mini tripulantes que eu não via, mas que estavam lá. frame à frame uma acidez gástrica, drástica, se instalava carente de mim. enquanto isso, plácida e estática, uma placa me olhava da calçada vizinha, percebi periférico. não quis. já sabia o teor da conversa. estava cansado demais de mais do mesmo, mas acho que não o bastante. o cão trotou na direção da placa e estancou , me fulminando(nenhuma novidade nisso, posto que por algum motivo sempre tive esses momentos 'olho no olho' com cães, gatos e crianças). e então algo inédito: ele piscou pra mim - piscadela normal, com os dois olhos, nada demais - e em seguida olhou pra placa. "ah, é só uma placa", pensei ingênuo. olhei. ela então disparou, silenciosa e sucinta em seu tom gurú: "não estacione". ... silêncio. silêncio onipresente por alguns, por vários segundos. mas que poder de síntese o das placas, não? não a agradou minha sexta chorosa e ela pedia outra faixa. o gasto tinha lá sua bossa, claro que sim, mas agora era hora de uma bossa nova. quem sabe um samba, um côco... "sai da chuva", ouvi de súbito, já bem ensopado. atrás de mim uma mão se oferecia saída de emergência, parte de uma silhueta que o poste-luz atrás da moça gentil gravava como um carimbo bem no meio do aberto . estendi a mão, quase ao mesmo tempo em que me surpreendi por tê-lo feito, sem no entanto me arrepender. levantei. do chão, do cão e de tudo mais. de mão dada com a silhueta, eu já dava o sexto ou sétimo passo largo, quase corrido, em direção à marquise do Aurora, que fechava. a camisa grossa encharcada e gelada. as calças jeans mais pesadas do mundo. o bater de dentes que cabia, mas me poupou. senti o desamparo afinal. o tal que a silhueta, a placa e os tripulantes dos mini-barcos folhas devem ter sentido ao me ver. não que isso signifique que o desamparo existisse de fato. é que as pessoas tem memória. e video-cassetes, e tele-novelas em seus ontens e delicadezas. em suas mãos pré-estendidas. em seus espelhos cada vez mais bacanas. em suas lágrimas no cinema e eus sensíveis. e isso não é uma crítica. não mais. admiro isso. ainda mais, depois de hoje. um eu calado e quase trêmulo voltou praquele agora e um rosto disponível e cândido me esperava nele: "tudo bem?". "tá sim. cada vez mais". sorriso dela. "alguém te machucou?". sensível ela. "é, um bocado. mas to bem. tava até bom lá". pausa. "no machucado?". eu sorri. "não, no meio-fio. na chuva". ela sorriu. "é, mas é depois que fica ruim, né?". pausa curta. ela de novo,"se cuida, poxa". achei tão bonito o "poxa". como se não bastasse esse tamanho de encontro solto e como se aquilo ainda não fosse já especial, ela perguntou, tão improvável quanto desconcertante: "sabe o que melhora?". balancei a cabeça na horizontal. "beijo no olho". eu olhando pro rosto borrado de escuro sem entender. "fecha". fechei. ela se apoiou nos meus braços cruzados e talvez tenha ficado na ponta dos pés também. 1, 2, 3... foram 6 os beijos. todos no olho direito. leves, mornos, cadenciados e encaixados de forma simplesmente perfeita em minha cavidade ocular, como se essas partes tivessem sido feitas uma para a outra e há muito alguém em algum lugar tivesse profetizado o encontro das duas, a descoberta desse segredo. nada de flerte, nem sedução. se eu pudesse definir seria algo mais parecido com o termo "suspenso". no tempo, no espaço. não consegui reagir. talvez tenha sido essa a reação, acho que sim. a moça sem rosto sorriu ainda uma vez antes de passar a mão pelo meu rosto e ir, sem olhar pra trás por uns 15 ou 20 passos. um aceno na esquina com a Voluntários da Pátria, e fim.
quis ter mais do livre e do leve.
sábado, maio 03, 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
liiindo! lindo! sou eu o cara no meio fio e sou eu a moça que diz poxa... quero mais do livre e do leve também. : )
(queria saber adicionar aos favoritos, mas ainda não aprendi)
Você aquii tambiennn!
besos
vc é aquele cara...o Caio fernando Abreu...ah,ñ...desculpa, ñ é...mas, escreveu tão parecido, tão inspirado!
Lindo, amigo...imagens e vivências lindas!
bjo
Postar um comentário